Manuel Policarpo
Manuel Policarpo é oriundo da ilha do Pico. Com rápida passagem pela Terceira, desde há muito que vai calcorreando o mundo. Contudo, quando lhe perguntam onde nasceu, responde, mitificando:
nasci numa ilha por cima do mundo.
Alardeia que é circunstância do tempo e dos espaços e que apenas caminha por onde o levam seus próprios passos. Mas reclama a sua condição de intelectual europeu e, por isso, mantém uma altiva distância por tudo o que é localista, regionalista, nacionalista, com pavor por toda a manifestação chauvinista.
Vagamundeou o planeta – a Europa, antes de mais, onde descobre a latinidade e o romanismo como essência do aprendizado; as áfricas, de que não detém nem ao menos os cheiros; as américas que o deslumbram de Norte a Sul; as ásias que o inebriam, mas que lhe deixam, apenas, fugazes miradas que, a custo, guarda na memória. Reconhece, no entanto, ser ilhéu do Atlântico, reivindicando a ancestralidade de povoador primeiro dos Açores, reproduzindo, sobretudo, por mor de um tal capitão Thomé Gregório Ramalho, fecundador insaciável da Prainha do Norte, e de um tal João Salinas, escravo dos religiosos de São Francisco de Angra, putativo pai de uma pequena que vem a casar com Manuel de Barcelos, do melhor semental do Ramo Grande da Terceira: escravo e senhor, assim organiza o seu código genético.
Aprendeu as capacidades expressivas da cor, primeiramente com a mãe, artista do efémero, artífice de flores de açúcar, hábil manuseadora dos corantes for cooking effects (special effects…), que deslumbravam a burguesia angrense. Aliás, em entrevista a um diário português entretanto desaparecido, em 1978, considera que a gastronomia é a mais próxima arte da pintura. Mas também aprendeu as pinceladas infantis com velhas tias, que matavam as tardes húmidas esticando telas, bordando panos, repetindo mortas naturezas, moribundas cenas de caça, ingénuas representações etnográficas.
Depois, partiu, sem bilhete de retorno, à descoberta de sítios, paisagens, museus, mausoléus, poetas, escultores, pintores, gente, cidades com gente dentro, campos infindos com alma pressentida. Correu o Vale de Santarém, Ceca, Meca, a Casa do Diabo, o Cu de Judas, a Canada do Briado… Nunca tirou fotografias, com a presunção de que as pupilas dos olhos estabeleceriam free conection com os infindáveis rams da memória, e que guardaria no disco duro os motivos essenciais do que quereria figurar. Enganou-se: reconhece, hoje, que muito jeito lhe daria uma oficina que procedesse a um up grade no disco duro da moleirinha.
Nunca vendeu um quadro, vejam bem.
Afirma, no entanto, ter olhos de cartógrafo, mãos impulsivas, índole de gravador. Experimenta, experimenta sempre, nunca estabelecendo, a priori, a técnica que vai utilizar. Deslumbra-se com o exótico, e vai inscrevendo mapas, rotas, mitos, símbolos…. crendo, assim simular, em síntese, o que viu em vasos gregos, em paper-rocks indo-americanos, nos flamengos predilectos, nos impressionistas afeiçoados, nos contemporâneos ousados. Confuso, portanto.
Por isso dele dizem: é um poseur! – alça a sobrancelha esquerda por detrás das lentes do estigmatismo com desdenhoso trejeito perante a mediocridade e, tão só porque peregrinou as sete partidas e já tem cãs sobejas e aprendizagens múltiplas, nem sequer reage aos que o sussurram como diletante, cultivando uma ironia que, por vezes, roça o sarcasmo impiedoso.
- ‘Tou-me maribando! – proclama do pico do Pico da sua altivez senhoril, do cume da sua libertada escravidão, do topo da sabedoria que lhe concedeu o passadio.
Nunca vendeu um quadro, mas tem uma invejada colecção de arte, que foi construindo através de trocas com pintores conhecidos e ignorados – desde o Cambodja, Rajastão, franças e araganças, quase todas as presque-îles. E, assim, as suas obras estão dependuradas nos muros dos quintos do mundo. Afirmam os amigos mais íntimos que do que gosta, mesmo é da blague. E ninguém, como ele, de um modo muito vencidista-esquerdelhista, conforme à sua feição de incorrigível vieux soixante-buitard, négligé soigné, cultiva a amizade selectiva, libertária, boémia e transgressora.
Donde, custa a entender por que, finalmente, resolve mostrar, em exibição, o que tem feito. Por mim, que o conheço há perto de sessenta anos, creio que é por amor às suas ilhíadas (ao Pico e à Terceira de afeições terrunhas, primacialmente) e também por vínculos de fraternidade a Dimas Simas Lopes, condiscípulo, utópico como ele que resolve sustentar uma galeria no não-lugar, cartografado no Terreiro do Galhardo, Ladeira Branca, freguesia da Feteira, ilha Terceira, Açores, omphalós, do planeta.
Vasco Perreira da Costa
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