A CONTEMPLAÇÃO CARINHOSA DA ANGÚSTIA
A experiência interior, factor desacreditado, é ainda, na civilização ocidental, uma medida de revelação dos fenómenos que são, ao mesmo tempo, os factos que a razão examina e que o espírito resgata ao mistério.
Agustina Bessa-Luís
Em princípio, tudo o que é estranho e bizarro desperta a nossa atenção. Abeira-nos do desassossego. Inquieta-nos. Embora, por hábito ou preguiça, tenhamos apurado técnicas sofisticadas de olhar sem ver, de passar de raspão sobre tudo quanto nos rodeia.
A exposição que agora se mostra na Carmina radica o seu valor precisamente na meticulosa encenação de grandes massas de desassossego. Massas que desvelam interiores esponjosos e translúcidos num sempre extremo cuidado com o contorno, como se o artista, mais do que dar livre curso a fantasias pessoais, quisesse interrogar o nosso modo de perceber e recordar as coisas. Algo particularmente evidente nas formas e símbolos intimamente ligados aos lugares e pormenores da ilha.
Estamos perante uma obra que explora ao mesmo tempo formas do mundo natural e formas arquitectónicas, juntamente com imagens de funda idiossincrasia, temperadas por referências aos quatro elementos nucleares – terra, ar, água e fogo. Num lúdico jogo de dualidade entre os revestimentos exteriores e os tensos, volumosos e viscerais magmas interiores, que se estende das obras ao espaço da galeria, já que a disposição de desenhos e esculturas torna-se ela própria num desenho, transformando-nos a nós, espectadores, em pequenos detalhes da exposição. Maneira de José Espadinha dizer que entende a arte como uma busca do audaz, do desproporcionado, do onírico e como uma poderosa interrogação sobre o mundo.
Desenhos e esculturas que são como que variações de uma intuição e trabalho de exploração de equilíbrios que reclamam do espectador uma atitude activa, pois é este quem recria a obra ao completar-lhe o sentido, num processo que se assemelha ao que acontece entre nós e as formações nublosas.
A aparente frieza destas formas que flutuam esconde aquilo que Balthus, um cultor da sensualidade do desenho, considerava fundamental: ir ao fundo do secreto, ser capaz de alcançar a imagem e a luz interior. Luz que aqui se revela distante, contida, como se o artista tivesse entrado em contacto com o mistério. Um mistério que os seus gestos ligeiros e inquietos decantam em porções comedidas, contrabalançando frieza e sensualidade, ternura e horror.
Estamos, pois, em presença de uma obra plena de vibrações secretas, rica em sonho, que nos abeira de fulgurações essenciais e nos inquieta com o que tem de diálogo com a solidão e com a morte. Caso para pedir a Agustina Bessa-Luís o leit-motiv desta mostra, a contemplação carinhosa da angústia.
Carlos Bessa |